5.02.2012

MIL VOZES A DOS TEMPOS, EM ESPAÇO CONVENTUAL




MIL VOZES de protesto (ou espanto), de revolta (ou admiração)! O clamor da indignação dos pobres injustiçados, ou a glória triunfante e sumptuosa dos trunfos da riqueza e da fortuna. Mil vozes surdas, gritantes e simultâneas, entre o mutismo secular-intemporal dos rebanhos humanos domesticados, subjugados pela desumanidade do poder. O poder (ir)racional da força natural, contra as forças malignas que chibatearam a energia braçal da Humanidade primordial, para que a madeira, a rocha e, o metal, produzissem as máquinas elementares que não libertariam a cidadania, antes confeririam, ao progresso marcial, a energia de novas armas, guiadas pela astúcia iníqua dos poderosos que, sempre!, a dominaram pelo dinheiro que cimenta os cultos da ignorância e a diversidade do temor avassalante.

O paradoxo social, os paradigmas idiossincráticos da política, as fraudulentas lições da História, as lendas do Medo, a fábrica equívoca de áureos futuros colectivos, o milagre da felicidade comunitária gratuita sorteada, nas compras massivas de fé(?), impostas às almas indecisas pela (ir)racionalidade da propaganda. O marketing publicitário multimilenar das tiranias!  

Esta é uma mostra conjunta de obras livres e inter-descomprometidas, marcada pela força de mãos-dadas, de dois artistas plásticos, uma vez mais reveladora (in)comum de uma proximidade pontual afectiva e solidária – na actualidade e, sempre! – entre perfis distintos, duas linguagens, duas personalidades diversas que, intencionalmente, conjugam, a dois tempos, o subjectivismo de ecos dessas mil vozes num espaço conventual, onde se casa a natureza do (ir)real simbólico, na forma (o volume corpóreo, orgasticamente saboreado pela modelação escultórica da morfologia humana elevada ao feminino) …com o surreal transacto, na figura pictural (a imagem virtualmente plana, onde a eloquência, interpretativa da absurdez social contemporânea, se manifesta, desventradora da aparência comum das pessoas e suas coisas): as mensagens, táctil e virtual, de duas autorias lusitanas dando forma à ‘essência pessoana de um desassossego quinto’imperial’ num lapso transgressor da nossa coetaneidade…

Eis que, neste acolhedor – e histórico-monumental – espaço monástico (…monárquico, também, enquanto símbolo da riqueza transatlântica do poder senhorial absoluto de Dom João V) se concelebra, com a exibição associada de obras destes dois autores, o Dia Internacional dos Museus, não mais se duvidando que o conceito necrológico a estas instituições, outrora generalizadamente atribuído, se aproxima de ser, definitivamente, postergado!

De facto, o acolhimento dado a esta exposição temporária permite oferecer – aos que a visitem (lateralmente ao percurso diário das visitas museológicas à grandiosidade deste espaço, outrora realista e conventual ) – a ressurreição da força anímica que dele remanesce, como implante, transitório e exemplar, da criatividade artística contemporânea.

Fica demonstrado, à puridade, que um Museu não é, de facto, nos dias de hoje, um cemitério de cultura, consagrado ao constrangimento e ao «medo respeitoso das massas populares analfabetas, de antanho, perante um obscurantismo conveniente à ocultação da verdade dos homens e das coisas, da Arte e da Ciência»…

Com a significância e representatividade das obras expostas, Santos Carvalho e Ricardo Passos, os dois expositores, honram, numa segunda edição, o convite dos responsáveis institucionais, dedicando, à efeméride, um contributo pleno de autenticidade onde ecoam os gritos de mil vozes, entre milhentos silêncios, sucedâneas (em múltiplas e aleatórias perspectivas), já exponencialmente valorizados no legado cultural humanístico do literato universal português José Saramago – sobremodo e, também, no fictivo monumento Memorial, que engendrou – pretextado pelo espaço (i)material do Convento que, parcial, esporádica e, coincidentemente, as alberga…

Trata-se, repito, de linguagens – intercomplementares, nas suas leituras – provenientes do imaginário (circunstancialmente) síncrono, de dois artistas plásticos credenciados, com um percurso internacional paralelo, entrecruzado, mais uma vez, nesta efeméride. Cada um dos autores – a seu modo e maneira – explora a homeomorfo’geneidade da Figuração Humana, dela extraindo expressões situacionais ou sentidos nocionais impressivos, congeminados em acepções de intensa ‘ambiguidade gramatical’ que, (soit disant) conformes (ou disformes) desafiam a fantasia do observador, pelo seu (des)ajustamento …ou inusitada configuração contextual, seja na sua singularidade, no conjunto …ou, na transitoriedade (ou provisoriedade) ambiental, deste invulgarmente magnífico espaço expositivo.

O maravilhoso – magnificente-mítico ou aterrador-quimérico – contido nos artefactos aqui conjugados, verá, porventura, multiplicada, a sua significância intrínseca, por efeito analítico, ou da liberdade especulativa, do observador, solícito de atenção, admiração ou reparo, seja pela sua (im)pertinência ou acutilância crítica, pela sua simplicidade, ou pela simbiose de noções que, supostamente, a sua carga potencial desencadeará.

Nem o âmbito, nem o contexto, nem os meios próprios, susceptíveis de terem sido disponibilizados a esta exposição, nos possibilitam alargar o espectro desta breve (e, manifestamente, insuficiente) nota introdutória. As obras patentes serão mais eloquentes. Este imponente espaço, conventual e palaciano, de Mafra – multiplicado pela presença daqueles que a visitem – lhe conferirão aquilo que, obviamente, seria displicente acrescentar-se aqui, na escrita breve destas dispensáveis palavras…     

José-Luis Ferreira
CARAMULO, MAIO 2012


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